Brasil

Histórias do Siko

Introdução

Siko

Siko1 era grande contador de histórias, e ele sabia muitas histórias antigas. Ele sabia não só muitas histórias antigas dos jarawaras, mas o repertório dele foi enriquecido pela esposa dele, Amoro, que tinha origem num grupo indígena vizinho, os wa yafis; então ele contava muitas histórias dessa etnia também. Um dos distintivos do Siko como contador de histórias era a habilidade dele com os efeitos sonoros. Os efeitos sonoros são comuns nas histórias dos jarawaras, e muitos deles podem ser vistos como pertencentes a uma classe de palavras que expressam sons; mas Siko usava essas palavras como nenhum outro, e muitos dos efeitos sonoros que ele usava sem dúvida eram originais dele.

Siko nasceu em aproximadamente 1923, na aldeia de Assado (dizem), uma aldeia velha que ficava no rio Preto.2 A primeira esposa dele era Isi Biriki, e eles tiveram três filhas. Um das filhas, Inarinaha, morreu na infância, mas as outros duas, Bata Kani e Morena, casaram e tiveram filhos. Hoje as duas já morreram. O filho da Bata Kani e seus filhos e netos moram nas aldeias jarawaras. Morena casou com um ribeirinho não-índio e morou fora da área indígena, e os filhos e netos dela moram na Estação, uma comunidade ribeirinha do rio Purus, e na cidade próxima de Lábrea.

Siko e Amoro

Depois que Isi Biriki morreu, Siko casou com Amoro, que era de um grupo de wa yafis que fugiram da sua aldeia quando foram atacados por índios apurinãs, provavelmente na década de 1940 (Maizza 2009:182). Alguns foram para as aldeias jamamadis e outros para as aldeias jarawaras, e muitos dos jarawaras hoje são descendentes deles. Amoro e Siko não tiveram filhos, mas Amoro tinha ficado viúva duas vezes, e teve filhos dos dois primeiros casamentos (o primeiro com um wa yafi, e o segundo com um jarawara). Siko morreu em 1994 na aldeia Casa Nova, e Amoro morreu em 1999, também em Casa Nova.

Siko era primo legítimo (paralelo) do Yowao, que era outro contador prolífico de histórias, que morreu em 2002. Algumas das histórias do Yowao foram publicadas nos volumes 1 e 2 de textos jarawaras que tenho disponibilizado na internet (Vogel 2012; 2019), e estou preparando um volume de histórias dele que vai incluir muitas outras.

As histórias deste volume quase todas foram publicadas anteriormente nos dois volumes de textos que mencionei, com a exceção de cinco das histórias,3 que não foram publicadas antes. Um bom número de revisões foram feitas nas análises apresentadas nas histórias já publicadas.

Comecei a gravar os textos em 1987. Os textos foram originalmente gravados em fita cassete, e transcritos com a ajuda de alguns jarawaras alfabetizados. Muitas dúvidas foram resolvidas em sessões com Okomobi e Bibiri, que têm um dom especial para a linguagem. As gravações foram feitas na aldeia Casa Nova.4 Os textos foram interlinearizados com o uso do programa Fieldworks Language Explorer (FLEx).5

É meu costume pedir a autorização dos autores de textos jarawaras para o uso dos textos para fins não-comerciais, mas só comecei a fazer isso depois que Siko já era falecido; então para estes textos, foram parentes dele que assinaram as autorizações.

Os textos não devem ser vistos como textos escritos editados. Todos os textos são originalmente textos orais, nenhum dos textos foi originalmente escrito. Além do mais, as transcrições não procuram revisar o que foi falado. Isso significa, por exemplo, que começos errados, repetições de palavras, e erros de gramática ocasionais são retidos nas transcrições. Em alguns casos são discutidos em notas de rodapé, mas a maioria não é.

Os textos estão divididos em dois grupos, as narrativas de experiências pessoais e as histórias tradicionais. Com poucas exceções, as histórias de experiências pessoais que Siko contava não eram das experiências dele mesmo,6 mas de outras pessoas que ele conhecia, ou pelo menos sabia qual era a relação dele com elas. Por exemplo, ele contava várias histórias do avô dele, Bono Wiyo, que parece que morreu antes do Siko nascer. Em contraste, as histórias tradicionais concernem um passado mais distante.

O seguinte formato é usado para cada texto. No início está uma tradução livre, e depois segue o texto em formato interlinear. A primeira linha do formato interlinear é ortográfica. A segunda linha representa as formas subjacentes7 e as divisões morfêmicas. Na terceira linha estão as glosas de cada morfema. A quarta linha representa as classes das palavras, e na última linha está a tradução de cada frase. Esta tradução de cada frase é a mais literal possível, em contraste com a tradução livre no início de cada texto, que procura expressar o significado do texto em português mais normal. Na tradução livre, algumas informações implícitas estão adicionadas, a referência a participantes (por exemplo, a escolha entre pronome e sintagma nominal) segue as normas do português, e algumas repetições são omitidas.

Observe que alguns períodos em jarawara são extremamente compridos, porque às vezes muitas "orações dependentes" podem ocorrer juntas. Para mais informações sobre as orações dependentes em jarawara, o leitor deve consultar Dixon (2004) e Vogel (2009).

A ortografia Jarawara basicamente é fonêmica e transparente, com a exceção de não distinguir as vogais longas. Uma explicação da ortografia se encontra no meu Dicionário Jarawara-Português, que está disponível na internet. Nas formas subjacentes da segunda linha, se usa o símbolo I para representar um morfofonema que se realiza como i ou e, dependendo do número de moras precedentes na palavra: i se o número de moras que precede é par, e e se o número é impar (veja Dixon (2004:40ff)).

Na linha ortográfica tenho usado a pontuação de forma normal, com uma exceção importante. Enquanto que normalmente se usa a vírgula para indicar as pausas gramaticais, eu tenho usado as vírgulas para indicar as pausas fonéticas. Alguns leitores podem achar isso esquisito, já que as pausas às vezes ocorrem no meio da frase e por nenhuma razão gramatical – os falantes às vezes pausam apenas para pensar no que vão dizer – mas eu queria registrar essa informação, e não pensei em outra maneira de registrá-la.

As abreviaturas usadas são as seguintes:

1 - primeira pessoa

HAB - habitual

PL - plural (dois ou mais)

1EX - primeira pessoa plural exclusiva

HIPOT - hipotético

pn - substantivo de posse inalienável

1IN - primeira pessoa plural inclusiva

IMED - immediato

POSS - possuidor/possessivo

2 - segunda pessoa

IMP - imperativo

posp - posposição

3 - terceira pessoa

INC - incoativo (mudança de estado)

PR - passado recente

adj - adjetivo

INT - intentivo

pron - pronominal

ADJU - adjunto

interrog - proforma interrogativa

prt - partícula

adv - advérbio

IPAR - interrogação parcial

RECIP - recíproco

ALT - modo alternativo

ISN - interrogação de sintagma nominal

REFL - reflexivo

antip - antipassiva

LIST - construção de lista

REP - reportivo

AUX - auxiliar

LOC - locativo

result - resultativo

CAUS - causativo

+M - concordância masculina

S - sujeito

COMIT - comitativo

mpropn - nome próprio masculino

SEC - verbo secundário

conj - conjunção

N - não testemunhado

SG - singular

CONT - continuativo

NEG - negativo

som - palavra que expressa som

CNTRFAT - contrafatual

NEG.LIST - item negativo de lista

sp - espécie

DECL - declarativo

nf - substantivo feminino

SUPER - superlativo

DIST - distante

NFIN - não finito

T - testemunhado

DISTR - distributivo

nm - substantivo masculino

vc - verbo copular

DUP - reduplicação

NOM - nominalização

vb - verbo bitransitivo

+F - concordância feminina

O - objeto direto

vi - verbo intransitivo

F.PL - plural e feminino

OC - construção "O"

voc - vocativo

fpropn - nome próprio feminino

PD - passado distante

vt - verbo transitivo

FUT - futuro

PI - passado imediato

 

O leitor que quiser mais informações sobre a sintaxe, morfologia, e fonologia de jarawara deve consultar a gramática de R.M.W. Dixon (2004), The Jarawara Language of Southern Amazonia, e a introdução do meu Dicionário Jarawara-Português.

O leitor que tiver qualquer comentário ou dúvida está convidado a entrar em contato comigo pelo endereço [email protected].


Notas de Rodapé

1 O nome jarawara do Siko era Bai Abono, mas todos os parentes dele usavam o nome dele em português, Chico Fernandes. Alguns falavam Siko Fenani, mas a maioria dizia só Siko.

2 Para um mapa de aldeias jarawaras do presente e do passado, veja Maizza (2009:192)

3 As cinco histórias sendo publicadas pela primeira vez são "Muitas Batalhas" da segunda seção, e as seguintes histórias da primeira seção: "Weko", "Os Brancos Mataram Kawi Yife", "Cinco Yimas Vieram", e "Os Matrinxãs dos Rio Curiá".

4 Os aproximados 230 falantes de jarawara vivem na reserva indígena Jamamadi-Jarawara no município de Lábrea, AM.

5 O programa FLEx está disponível para download gratuito no site da SIL International (sil.org).

6 A exceção é "Fizeram Canoa de Casca de Jutaí". A história "Towisawa Rowi" é uma meia exceção, já que Siko faz referência ao fato que o Towisawa contou a história para ele.

7 Com a segunda linha tem-se a intenção de representar as formas subjacentes fonológicas, inclusive as vogais longas, que não são representadas na ortografia do jarawara. Porém em alguns casos a forma subjacente é mais morfológica do que fonológica. Em jarawara existem alternações de vogais nos verbos que são reflexos de processos gramaticais, especificamente concordância de gênero e a derivação de formas não finitas. Onde é possível determinar a forma subjacente morfológica, uso esta e não todas as formas que resultam de processos gramaticais. Por examplo, o sufixo -ma ‘de volta’ tipicamente tem esta forma única nos contextos em que não há concordância de gênero, enquanto que tipicamente tem a alternação -ma/-me em outros contextos, para indicar concordância feminina ou masculina, respectivamente. Uso -ma como forma subjacente em todos os contextos, mas indico a concordância de gênero na segunda linha ('de volta+F' ou 'de volta+M') em todos os contextos em que a forma indica a concordância de gênero normal de frases finitas.

Semelhantemente, a forma não finita de um radical verbal se deriva mudando a final para i, mas uso a forma com a como a forma subjacente, mesmo quando se trata de forma não finita, mas no caso de forma não finita acrescento NFIN. Por exemplo, dou a forma subjacente de fawa 'beber', que é fawi, como fawa.NFIN. Uma das vantagens de fazer assim é que fica muito mais fácil fazer uma busca por todas as ocorrências de um determinado morfema. Além disso, com este recurso é possível indicar que determinada forma é não finita mesmo não existindo a mudança de a para i, como é o caso dos verbos que terminam com o, i, ou e.

Em jarawara existe uma construção chamada "construção de lista", e uma das manifestações desta construção é que não tem concordância de gênero no radical verbal. Quando este é o caso, indico isso na segunda linha. Por exemplo, quando fawa está numa construção de lista, isso se indica na segunda linha como fawa.LIST. Assim, o leitor sabe porque o a no fim do verbo não está indicando concordância feminina nesse caso. (Sendo que os itens numa lista às vezes são sintagmas nominais, estes também são marcados da mesma forma.)

Existe mais uma construção que é marcada na segunda linha, que são as frases nominalizadas. Essas formas verbais são marcadas com NOM, e o gênero é indicado quando a forma o indica, isso é, NOM+F ou NOM+M. Desta forma distingue-se esta concordância de gênero da concordância normal de frases finitas.


Referências

Dixon, R.M.W. 2004. The Jarawara language of Southern Amazonia. Oxford: Oxford University Press.

Maizza, Fabiana. 2009. Cosmografia de um mundo perigoso: espaço e relações de afinidade entre os Jarawara da Amazônia. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.

Vogel, Alan. 2009. Covert tense in Jarawara. Linguistic Discovery 7:43-105.
http://journals.dartmouth.edu/cgi-bin/WebObjects/Journals.woa/xmlpage/1/article/333

Vogel, Alan. 2012. Textos Jarawaras interlineares vol. 1.
https://www.silbrasil.org.br/recursos/textos_jarawara_interlineares_vol_1

Vogel, Alan. 2016. Dicionário Jarawara-Português.
https://www.silbrasil.org.br/resources/archives/72030

Vogel, Alan. 2019. Textos Jarawaras interlineares vol. 2.
https://www.silbrasil.org.br/recursos/textos_jarawaras_interlineares_vol_2


Lista dos Textos

Parte I - Narrativas de Experiências Pessoais:

áudio (16m 57s)

1987

áudio (7m 54s)

1991

áudio (6m 27s)

1991

áudio (1h 16m 21s)

1992

áudio (21m 30s)

1992

áudio (46m 06s)

1992

áudio (47m 51s)

1992

áudio (12m 20s)

1992

áudio (29m 02s)

1992

áudio (9m 27s)

1992

áudio (17m 09s)

1993

áudio (4m 13s)

1993

áudio (8m 41s)

1993

áudio (8m 43s)

1993

Parte II - Histórias Traditionais:

áudio (4m 42s)

1987

áudio (10m 52s)

1987

áudio (12m 43s)

1991

áudio (28m 55s)

1991

áudio (12m 04s)

1991

áudio (21m 57s)

1991

áudio (7m 16s)

1991

áudio (1h 25m 03s)

1991

áudio (18m 26s)

1992

áudio (1h 10m 46s)

1992

áudio (1h 05m 22s)

1992

áudio (55m 33s)

1992

áudio (5m 42s)

1992

áudio (18m 42s)

1992

áudio (16m 17s)

1992

áudio (12m 09s)

1992

áudio (8m 16s)

1992

áudio (5m 39s)

1992

áudio (24m 26s)

1992

áudio (13m 59s)

1992

áudio (14m 00s)

1992

áudio (4m 32s)

1992

áudio (14m 16s)

1992

áudio (15m 23s)

1992

áudio (27m 05s)

1992

áudio (15m 25s)

1992)

áudio (38m 50s)

1992

áudio (18m 47s)

1992

áudio (6m 44s)

1992

áudio (7m 00s)

1992

áudio (15m 40s)

1992

áudio (21m 53s)

1992

áudio (18m 13s)

1992

áudio (8m 25s)

1992

áudio (19m 43s)

1992

áudio (9m 15s)

1992

áudio (24m 15s)

1992

 

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