Histórias do Yowao
Introdução
Yowao numa roça
Yowao Jarawara nasceu provavelmente por volta de 1924, numa aldeia perto do igarapé Preto,1 dentro da terra que agora consitui a Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti.2
O nome Yowao é português – João. Ele também tinha um nome em jarawara, isso é, Kana Abono, mas as pessoas normalmente chamavam ele de Yowao.
Entre 1987 quando eu e minha esposa Lucilia fomos encarregados do projeto Jarawara pela SIL, e a morte do Yowao em 2002, gravei muitas histórias contadas pelo Yowao, e a maioria delas está publicada aqui. Ele era um dois dois principais contadores de histórias da aldeia Casa Nova, junto com o primo legítimo dele Siko, cujas histórias também publiquei recentemente. A história do Yowao sobre Saba fui uma das primeiras que gravei.
Quando publiquei as histórias do Siko (Vogel 2022a), quase todas as histórias tinham sido publicadas antes, nos volumes 1 e 2 de textos jarawaras que eu tinha disponibilizado pela internet (Vogel 2012, 2019). Algumas das histórias do Yowao também foram publicadas nesses dois volumes, mas a maioria está sendo publicada pela primeira vez agora.
Yowao com uma torcha tradicional
O nome indígena de Yowao, Kana Abono, significa 'espírito da cana-de-açúcar'. Yowao foi pajé poderoso, e isso se reflete nas suas histórias, um bom número das quais tem a ver com os espíritos. Além de ser pajé, Yowao também foi tuxaua de sua aldeia. Ele e sua esposa Aobina tiveram treze filhos, e quase todos que moram na aldeia Casa Nova são descendentes do casal ou casados com descendentes.
Os textos foram originalmente gravados em fita cassete, e transcritos com a ajuda de alguns jarawaras alfabetizados. Muitas dúvidas foram resolvidas em sessões com Okomobi e Bibiri, que têm um dom especial para a linguagem. As gravações foram feitas na aldeia Casa Nova. Os textos foram interlinearizados com o uso do programa Fieldworks Language Explorer (FLEx).3 O leitor vai notar que existem duas ou mais versões de algumas das histórias desta coletânea, que foram gravadas em ocasiões diferentes.
É meu costume pedir a autorização escrita dos autores de textos jarawaras para o uso dos textos para fins não-comerciais, mas só comecei a fazer isso depois que Yowao já era falecido; então para estes textos, foram parentes dele que assinaram as autorizações.
Os textos não devem ser vistos como textos escritos editados. Todos os textos são originalmente textos orais, nenhum dos textos foi originalmente escrito. Além do mais, as transcrições não procuram revisar o que foi falado. Isso significa, por exemplo, que começos errados, repetições de palavras, e erros de gramática ocasionais são retidos nas transcrições. Em alguns casos são discutidos em notas de rodapé, mas a maioria não é.
Aobina, esposa de Yowao
Os textos estão divididos em dois grupos, as narrativas de experiências pessoais e as histórias tradicionais. As histórias de experiências pessoais incluem tanto as de experiências do Yowao mesmo, como também as de outras pessoas que Yowao conhecia, ou às vezes de pessoas do passado que ele sabia pelo menos qual era a ligação de pessoas atuais com elas. Em contraste, as histórias tradicionais concernem um passado mais distante. Enquanto que a maioria das histórias do Siko era tradicional, as do Yowao representam um equilíbrio maior entre narrativas de experiências pessoais e histórias tradicionais.
O seguinte formato é usado para cada texto. No início está uma tradução livre, e depois segue o texto em formato interlinear. A primeira linha do formato interlinear é ortográfica. A segunda linha representa as formas subjacentes4 e as divisões morfêmicas. Na terceira linha estão as glosas de cada morfema. A quarta linha representa as classes das palavras, e na última linha está a tradução de cada frase. Esta tradução de cada frase é a mais literal possível, em contraste com a tradução livre no início de cada texto, que procura expressar o significado do texto em português mais normal. Na tradução livre, algumas informações implícitas estão adicionadas, a referência a participantes (por exemplo, a escolha entre pronome e sintagma nominal) segue as normas do português, e algumas repetições são omitidas.
Observe que alguns períodos em jarawara são extremamente compridos, porque às vezes muitas "orações dependentes" podem ocorrer juntas. Para mais informações sobre as orações dependentes em jarawara, o leitor deve consultar Dixon (2004) e Vogel (2009, 2022b).
A ortografia Jarawara basicamente é fonêmica e transparente, com a exceção de não distinguir as vogais longas. Uma explicação da ortografia se encontra no meu Dicionário Jarawara-Português (Vogel 2016), que está disponível na internet. Nas formas subjacentes da segunda linha, se usa o símbolo I para representar um morfofonema que se realiza como i ou e, dependendo do número de moras precedentes na palavra: i se o número de moras que precede é par, e e se o número é impar (veja Dixon (2004:40ff)).
Na linha ortográfica tenho usado a pontuação de forma normal, com uma exceção importante. Enquanto que normalmente se usa a vírgula para indicar as pausas gramaticais, eu tenho usado as vírgulas para indicar as pausas fonéticas. Alguns leitores podem achar isso esquisito, já que as pausas às vezes ocorrem no meio da frase e por nenhuma razão gramatical – os falantes às vezes pausam apenas para pensar no que vão dizer – mas eu queria registrar essa informação, e não pensei em outra maneira de registrá-la.
As abreviaturas usadas são as seguintes:
1 - primeira pessoa
HAB - habitual
PL - plural (dois ou mais)
1EX - primeira pessoa plural exclusiva
HIPOT - hipotético
pn - substantivo de posse inalienável
1IN - primeira pessoa plural inclusiva
IMED - immediato
POSS - possuidor/possessivo
2 - segunda pessoa
IMP - imperativo
posp - posposição
3 - terceira pessoa
INC - incoativo (mudança de estado)
PR - passado recente
adj - adjetivo
INT - intentivo
pron - pronominal
ADJU - adjunto
interrog - proforma interrogativa
prt - partícula
adv - advérbio
IPAR - interrogação parcial
RECIP - recíproco
ALT - modo alternativo
ISN - interrogação de sintagma nominal
REFL - reflexivo
antip - antipassiva
LIST - construção de lista
REP - reportivo
AUX - auxiliar
LOC - locativo
result - resultativo
CAUS - causativo
+M - concordância masculina
S - sujeito
COMIT - comitativo
mpropn - nome próprio masculino
SEC - verbo secundário
conj - conjunção
N - não testemunhado
SG - singular
CONT - continuativo
NEG - negativo
som - palavra que expressa som
CNTRFAT - contrafatual
NEG.LIST - item negativo de lista
sp - espécie
DECL - declarativo
nf - substantivo feminino
SUPER - superlativo
DIST - distante
NFIN - não finito
T - testemunhado
DISTR - distributivo
nm - substantivo masculino
vc - verbo copular
DUP - reduplicação
NOM - nominalização
vb - verbo bitransitivo
+F - concordância feminina
O - objeto direto
vi - verbo intransitivo
F.PL - plural e feminino
OC - construção "O"
voc - vocativo
fpropn - nome próprio feminino
PD - passado distante
vt - verbo transitivo
FUT - futuro
PI - passado imediato
O leitor que quiser mais informações sobre a sintaxe, morfologia, e fonologia de jarawara deve consultar a gramática de R.M.W. Dixon (2004), The Jarawara Language of Southern Amazonia, e a introdução do meu Dicionário Jarawara-Português.
O leitor que tiver qualquer comentário ou dúvida está convidado a entrar em contato comigo pelo endereço [email protected].
Notas de Rodapé
1 Para um mapa de aldeias jarawaras do presente e do passado, veja Maizza (2009:192).
2 Quase todos os aproximados 230 falantes de jarawara vivem nessa Terra Indígena, que fica no município de Lábrea, AM.
3 O programa FLEx está disponível para download gratuito no site da SIL International (sil.org).
4 Com a segunda linha tem-se a intenção de representar as formas subjacentes fonológicas, inclusive as vogais longas, que não são representadas na ortografia do jarawara. Porém em alguns casos a forma subjacente é mais morfológica do que fonológica. Em jarawara existem alternações de vogais nos verbos que são reflexos de processos gramaticais, especificamente concordância de gênero e a derivação de formas não finitas. Onde é possível determinar a forma subjacente morfológica, uso esta e não todas as formas que resultam de processos gramaticais. Por examplo, o sufixo -ma ‘de volta’ tipicamente tem esta forma única nos contextos em que não há concordância de gênero, enquanto que tipicamente tem a alternação -ma/-me em outros contextos, para indicar concordância feminina ou masculina, respectivamente. Uso -ma como forma subjacente em todos os contextos, mas indico a concordância de gênero na segunda linha ('de volta+F' ou 'de volta+M') em todos os contextos em que a forma indica a concordância de gênero normal de frases finitas.
Semelhantemente, a forma não finita de um radical verbal se deriva mudando a final para i, mas uso a forma com a como a forma subjacente, mesmo quando se trata de forma não finita, mas no caso de forma não finita acrescento NFIN. Por exemplo, dou a forma subjacente de fawa 'beber', que é fawi, como fawa.NFIN. Uma das vantagens de fazer assim é que fica muito mais fácil fazer uma busca por todas as ocorrências de um determinado morfema. Além disso, com este recurso é possível indicar que determinada forma é não finita mesmo não existindo a mudança de a para i, como é o caso dos verbos que terminam com o, i, ou e.
Em jarawara existe uma construção chamada "construção de lista", e uma das manifestações desta construção é que não tem concordância de gênero no radical verbal. Quando este é o caso, indico isso na segunda linha. Por exemplo, quando fawa está numa construção de lista, isso se indica na segunda linha como fawa.LIST. Assim, o leitor sabe porque o a no fim do verbo não está indicando concordância feminina nesse caso. (Sendo que os itens numa lista às vezes são sintagmas nominais, estes também são marcados da mesma forma.)
Existe mais uma construção que é marcada na segunda linha, que são as frases nominalizadas. Essas formas verbais são marcadas com NOM, e o gênero é indicado quando a forma o indica, isso é, NOM+F ou NOM+M. Desta forma distingue-se esta concordância de gênero da concordância normal de frases finitas.
Referências
Dixon, R.M.W. 2004. The Jarawara language of Southern Amazonia. Oxford: Oxford University Press.
Maizza, Fabiana. 2009. Cosmografia de um mundo perigoso: espaço e relações de afinidade entre os Jarawara da Amazônia. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.
Vogel, Alan. 2009. Covert tense in Jarawara. Linguistic Discovery 7:43-105. http://journals.dartmouth.edu/cgi-bin/WebObjects/Journals.woa/xmlpage/1/article/333.
Vogel, Alan. 2012. Textos Jarawaras interlineares vol. 1. http://www.silbrasil.org.br/recursos/textos_jarawara_interlineares_vol_1.
Vogel, Alan. 2016. Dicionário Jarawara-Português. http://www.silbrasil.org.br/resources/archives/72030.
Vogel, Alan. 2019. Textos Jarawaras interlineares vol. 2. https://www.silbrasil.org.br/recursos/textos_jarawaras_interlineares_vol_2.
Vogel, Alan. 2022a. Histórias do Siko. https://www.silbrasil.org.br/recursos/hist_rias_do_siko.
Vogel, Alan. 2022b. A typology of finite subordinate clauses in Jarawara. Cadernos de Etnolingüística, Série Monografias, 6. http://www.etnolinguistica.org/mono:6.
Lista dos Textos
Parte I: Narrativas de Experiências Pessoais
áudio (9m 23s)
1991
áudio (3m 41s)
1991
áudio (1m 03s)
1991
áudio (29m 58s)
1992
áudio (7m 48s)
1992
áudio (5m 03s)
1992
áudio (14m 06s)
1992
áudio (20m 53s)
1992
áudio (13m 49s)
1992
áudio (48m 06s)
1992
áudio (5m 41s)
1992
áudio (14m 24s)
1993
áudio (1h 12m 58s)
1993
áudio (9m 54s)
1993
áudio (24m 07s)
1993
áudio (12m 28s)
1994
áudio (30m 03s)
1994
áudio (11m 37s)
1994
áudio (8m 22s)
1994
áudio (12m 52s)
1994
áudio (13m 50s)
1994
áudio (10m 38s)
1994
áudio (16m 18s)
1994
áudio (7m 11s)
1994
áudio (10m 55s)
1997
Parte II: Histórias Traditionais
áudio (4m 25s)
1987
áudio (11m 00s)
1991
áudio (2m 57s)
1991
áudio (8m 47s)
1991
áudio (4m 46s)
1991
áudio (45s)
1991
áudio (2m 55s)
1991
áudio (2m 17s)
1991
áudio (13m 54s)
1991
áudio (8m 03s)
1991
áudio (5m 10s)
1991
áudio (7m 57s)
1991
áudio (1m 32s)
1991
áudio (18m 40s)
1992
áudio (4m 02s)
1992
áudio (20m 10s)
1992
áudio (30m 18s)
1992
áudio (44m 31s)
1992
áudio (13m 00s)
1992
áudio (5m 39s)
1992
áudio (5m 55s)
1992
áudio (10m 42s)
1992
áudio (15m 52s)
1992
áudio (7m 53s)
1992
áudio (11m 22s)
1992
áudio (17m 12s)
1992
áudio (6m 10s)
1993
áudio (8m 18s)
1993
áudio (34m 10s)
1993
áudio (22m 03s)
1993
áudio (7m 07s)
1993
áudio (9m 23s)
1993
áudio (15m 51s)
1993
áudio (19m 59s)
1993
áudio (36m 35s)
1993
áudio (10m 12s)
1994
áudio (7m 35s)
1994
áudio (5m 16s)
1994
áudio (9m 15s)
1994
áudio (15m 29s)
1994
áudio (2m 43s)
1994
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